„UM GANHO PARA ALÉM DO BRASIL“

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No Brasil, mulheres negras são, com 28 % da população, o maior grupo demográfico do país. Porém, depois da última eleição de 2018, elas ocupavam menos de 2% de cadeiras no congresso nacional. A questão da representatividade melhorou depois dessa eleição?
Não tivemos grandes mudanças. Passamos de 2,3% para 2,5%. Então ainda estamos no mesmo patamar. Nessas eleições, apesar de muitas mulheres negras terem sido eleitas, não são todas comprometidas com a agenda anti racista. Muitas vezes são asociadas com partidos de direita, são Bolsonaristas. Isso pode ser explicado com o fato que houve uma mudança na legislação eleitoral para impulsionar essas candidaturas de pessoas negras, os partidos se aproveitarem dessas regras e assim conseguirem mais recursos para o financiamento de campanhas.

Nessa eleição, o Mulheres Negras Decidem apoiou 27 mulheres negras com uma agenda políticaprogressista nas suas candidaturas, uma em cada estado brasileiro e também no Distrito Federal. Essas mulheres conseguiram se eleger?
Tivemos bons resultados, muitas delas receberam muitos votos. Mas das 27, infelizmente só duas foram eleitas, a Laura Sito do PT e a Camila Valadão do PSOL. Como mulher jovem negra, a Laura por exemplo conseguiu mais de 30.000 votos na eleição para a Assembleia Estadual no Rio Grande do Sul, um estado que historicamente tem muitas questões com racismo.

Vocês estão satisfeitas com esse resultado?
Em termos de quantidade de candidatas que foram eleitas é bem abaixo do que era esperado, considerando toda mobilização de centenas de grupos que apoiaram candidaturas negras. Mas as candidatas apoiadas pelos movimentos que se elegerem são pessoas que chegarão na próxima legislatura muito fortalecidas e com um apoio da sociedade civil. Elas vão precisar reverter alguns dos atrasos que foram aprovados em termos de legislação no governo Bolsonaro. Elas chegam muito fortes nesse sentido mesmo se não são tantas como nós queríamos. Nunca existiu uma mobilização tão forte quanto nessas eleições.

Como você se explica que a mobilização foi maior esse ano?
A sociedade brasileira se deu conta de que transformações sociais profundas só são possíveis fazendo política. O jeito com que Bolsonaro lidou com a pandemia mostrou a desigualdade no acesso de direitos que existe no Brasil. Isso mostrou a urgência de ter representantes com um perfil mais popular para atender as demandas da maioria da população.

Porque é necessário apoiar candidaturas de mulheres negras? 
São mulheres que têm perfis políticos muito fora do comum, de movimentos sociais de base, de religiões de matriz africana, mulheres quilombolas. Para essas mulheres não é fácil participar de uma disputa, primeiro dentro dos partidos e depois na campanha política em si. Porque os projetos políticos delas se preocupam com o aprofundamento da democracia e questionam o poder como ele está estabelecido. Então elas são muito atacadas. Ao mesmo tempo, votar nelas é uma coisa boa para todo mundo porque uma vez eleitas, elas produzem políticas públicas que são do interesse de todos.

Você pode dar um exemplo?
Um exemplo seria a recém eleita Deputada Estadual Laura Sito que defende agendas consideradas prioritárias pelos eleitores no Brasil, como a educação. Mas a Laura fala de uma educação inclusiva, anti racista e emancipadora. 

Como você está se sentindo depois do suspense que era o segundo turno da eleição?
Estou menos preocupada do que estava antes do segundo turno. As forças armadas não estão tão dispostas contra a democracia e a constituição como nós imaginávamos. As instituições reconheceram o resultado e os protestos golpistas têm sido condenados não só pelo TSE mas também pelo STF, pelo Congresso e também pelamídia. Vencemos a etapa institucional mas me preocupo com o reconhecimento pela população. Temos uma quantidade significativa de pessoas nas ruas defendendo atos golpistas e antidemocráticos. É uma disputa de mais longo prazo que depende das lideranças democráticas fortes nas assembléias regionais e no Congresso, de movimentos de base fortes para a politização das novas gerações e a recuperação do debate público das questões do dia a dia. 

Isso significa que o Bolsonarismo vai permanecer?
A extrema direita cresceu e se organizou durante o governo Bolsonaro. Mas ela vai bem além do Bolsonaro e da família dele, como também dos seus apoiadores políticos. Essas ideias autoritárias são uma questão global que encontrou um terreno muito fertil no Brasil.

Os governadores que foram eleitos em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro estão bem próximos aBolsonaro. Isso dificulta o trabalho de movimentos e grupos sociais como o Mulheres Negras Decidem?
Nesses estados os movimentos já têm muita força, estrutura e recursos. O nosso desafio continua sendo principalmente em regiões nordestinas, norte e principalmente no Centro Oeste onde as estruturas são mais fragilizadas. 

Como os 51% dos brasileiros que foram votar e votaram no Lula deveriam lidar com os 49% das pessoas que votarem no Bolsonaro?
Isso será um grande desafio. O Presidente eleito Lula tem esse perfil de união e reconciliação, mas ele precisará muito da ajuda dos movimentos sociais para recuperar esse tecido social e promover unidade no Brasil. Quem apoia o Bolsonaro entende a importância da política também. Mas seus eleitores acreditam que existe uma luta do bem contra o mal. A questão agora é trabalhar para que essa compreensão seja desfeita. Trazer essas pessoas de volta para o debate sobre a realidade concreta que é uma dificuldade não só para os 49% mas para todo mundo. A realidade do brasileiro em média é de muita precariedade. Quanto mais cedo a gente conseguir voltar a discutir questões práticas do nosso dia a dia, para melhorar a situação de todo mundo, mais facilmente vamos conseguir lidar com essas diferenças.

O Presidente-eleito Lula precisará do apoio dos movimentos sociais. Vários grupos apoiaram a campanha dele, mas falam que vão virar oposição no momento em que ele tomará posse. Como seu governo poderia dar certo então?
No primeiro ano, os movimentos de base que apoiarem o Lula vão estar muito junto do governo. Vai ser um ano de reconhecimento do tamanho dos estragos que aconteceram e de planejar estratégias para reconstrução. Agora tudo vai depender muito de como vai ficar a configuração desse novo governo. Já saíram críticas sobre a configuração do grupo que está fazendo a transição do governo. Há poucas mulheres, não há pessoas negras. Ainda faltam alguns meses até o Lula anunciar os ministros. Será importante incluir mulheres, negros e indígenas. Isso aumentaria as possibilidades da cooperação entre governo e sociedade civil.

Quais são as suas expectativas para o novo governo Lula?
Essa questão da composição ministerial com muitas mulheres. Em cima disso, será importante, principalmente nos orgãos que cuidam da questão do enfrentamento do racismo, que ele coloque pessoas com perfil alinhado a agenda histórica dos movimentos negros. O Lula tem que escutar essas as sugestões que está recebendo para os cargos de confiança, como por exemplo, a Deputada Erica Malunguinho, uma mulher negra trans, para a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial ou para a Fundação Palmares.

Qual foi o papel das mulheres nessas eleições?
Elas tinham um papel principalmente no trabalho de base. O número das abstenções diminui no segundo turno e as mulheres tiveram um papel muito importante nessa decisão de outras pessoas da família irem votar. Graças a elas o Lula também mudou o foco na campanha e falou mais sobre o futuro, oportunidades para os jovens. Esse grupo, entre 18 e 35 anos, estava muito em dúvida se era para votar no Lula ou Bolsonaro, mas votaram no Lula no segundo turno.

Também teve quase um quarto da população com direito a voto que não votou, votou nulo ou branco. Isso sinaliza que a democracia brasileira está em crise?
É um reflexo da crise de representatividade e de confiança nas instituições que está acontecendo pelo menos nos últimos dez anos. Uma parcela grande está desacreditada de qualquer possibilidade de mudança e uma outra é impossibilitada de participar do processo político porque está em situação de grande vulnerabilidade. 

Qual será o efeito dessa eleição no âmbito global?
Com a volta do governo Lula conseguimos recuperar questões que são de política global, especialmente em relação a região amazônica, mas também em saúde, direitos humanos e mediação de conflitos que são agendas que o Brasil liderava. Isso é um ganho para além do Brasil.

ASSASSINATO MARIELLE FRANCO: UM LABIRINTO DE PERGUNTAS SEM RESPOSTAS

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(Ilustração: Joan Farías Luan, www.cuadernoimaginario.cl)

 

Marielle Franco foi brutalmente executada com quatro tiros na cabeça ao sair de um evento no centro do Rio de Janeiro, em 14 de março de 2018. Com ela, também foi assassinado o motorista de seu carro, Anderson Gomes. Ela era uma defensora dos direitos humanos, cujo ativismo, principalmente em prol de jovens negros e da comunidade LGTBI, rendera-lhe a posto de quinta vereadora mais bem votada.

Em 2019, os assassinatos completaram um ano. Pouco antes de sua morte, Marielle Franco denunciava execuções extrajudiciais cometidas por policiais e agentes do estado nas favelas do Rio de Janeiro. Ela foi relatora da Comissão Representativa da Câmara dos Vereadores, cujo objetivo é monitorar a intervenção federal na segurança pública do estado.

Em detalhes, a arma que matou Marielle Franco foi uma submetralhadora alemã Heckler&Koch. Um modelo HK MP5, de calibre 9mm, de alta precisão e que não costuma ser apreendido facilmente – é uma arma utilizada pelas forças de elite da polícia no Rio de Janeiro.

Pergunta-se como uma arma do arsenal da polícia terá chegado às mãos dos assassinos? Inquéritos sugerem milícias do estado do Rio de Janeiro como possíveis responsáveis pelo crime. Entretanto, mesmo depois de um ano da morte da vereadora e de seu motorista, as investigações mais parecem um labirinto de muitas perguntas sem respostas.  

Confirmada pelo secretário de segurança do Rio de Janeiro em dezembro, a linha de investigação mais aceita é a de que Marielle Franco teria sido morta por milicianos envolvidos na grilagem de terras na zona oeste do estado do Rio de Janeiro. Acredita-se que os criminosos poderiam temer a ação da vereadora de conscientizar os moradores daquela área sobre a usurpação de terras.

O inquérito também aponta alvos de prisões como líderes do grupo “Escritório do Crime”. Segundo veiculado pela imprensa brasileira, a morte de Franco poderia ter custado R$ 200 mil, embora supõe-se que assassinatos cobrados pelo grupo possam chegar a R$ 1 milhão.

Até agora, pelo menos cinco pessoas já foram detidas no caso que investiga a morte da vereadora e de seu motorista. Entre os detidos, um antigo tenente reformado é apontado como chefe da milícia. Outro investigado, o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, do grupo de elite da polícia carioca, o Bope, está foragido.

 

 

 

 

 

 

“Memória de uma guerreira que não se apaga.” Murais no Rio lembram Marielle Franco (Foto: Dominik Zimmer)

 

Já no primeiro mês de Governo, a reputação política do conservador clã Bolsonaro viu-se estremecida: investigações apontaram um possível elo entre o assassinato da vereadora Marielle Franco e o filho do presidente Jair Bolsonaro (PSL). E esse elo teria um nome: Adriano Magalhães da Nóbrega.

Segundo largamente veiculado pela imprensa brasileira em janeiro, o gabinete do ex-deputado e senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente, empregou, até novembro de 2018, a mãe e a mulher do ex-policial Nóbrega, tido pelo Ministério Público do Rio como um cabeça da milícia “Escritório do Crime”. A mesma organização apontada pelas investigações como possível responsável pelo assassinato de Marielle Franco.

Adriano Magalhães da Nóbrega, que está foragido, seria amigo do ex-assessor de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, investigado sob suspeita de recolher parte dos salários de funcionários do político, uma prática ilegal e alvo investigações; reportou o Jornal o Globo. Ainda segundo o veículo, a mãe do ex-policial, Raimunda Veras Magalhães, teria sido uma das servidoras que faziam repasses à conta de Queiroz.

Pormenores da investigação do assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, descritos em um relatório recente da Anistia Internacional Brasil, revelam que Marielle Franco foi morta com quatro disparos na cabeça, de ao todo 13.

A munição, de calibre 9mm, original, teria sido usada pela primeira vez e era parte de um lote da polícia federal. O lote denominado UZZ-18 teria sido vendido pela empresa Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) à polícia federal em 2006.

Trata-se de uma empresa Estratégica de Defesa, e uma das maiores fabricantes de munição do mundo. A CBC é controladora da empresa Taurus. Em dezembro de 2018, o Jornal brasileiro Folha de São Paulo reportou que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro bloqueou ações ordinárias da CBC sob acusação de que seu dono, o empresário Daniel Birmann, tenha criado empresas, algumas em paraísos fiscais, para esconder ativos.

Já o lote vendido pela CBC, o UZZ-18, teria sido desviado dos Correios no estado da Paraíba, em 2009 – segundo informou o ministro da Segurança Pública brasileiro, citado pela Anistia Internacional.

Os Correios, por sua vez, afirmam não haver registro do incidente. Sabe-se, porém, que armas do mesmo lote teriam sido usadas, em 2015, em uma chacina em São Paulo, nas regiões de Osasco e Barueri, quandfo 20 pessoas foram mortas, possivelmente, com a participação de policiais do mesmo grupo de extermínio que matou a vereadora carioca.

Embora digitais dos assassinos da vereadora e seu motorista tenham sido encontradas nas cápsulas, o inquérito não revela de quem são estas pessoas. Além disso, não está claro como o lote de munições foi extraviado da polícia federal, e por quem.

Se o rastro das munições usadas para matar Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes é obscuro por suas características, fatos e alegadas personagens, também a venda de armas pela empresa alemã Heckler & Koch ao Brasil é um tema controverso.

O ativista alemão Jürgen Grässlin estima que a cada 13 minutos em média uma pessoa tenha morrido no mundo por uma arma H&K desde a fundação da empresa, em 1949. “Segundo as regras anunciadas pela empresa em 2016, a empresa alemã não deveria mais tentar fazer negócios no Brasil”, disse Grässlin à emissora Deutsche Welle, em maio de 2018.

A Alemanha está entre os cinco maiores exportadores de armas do mundo, um setor que emprega pelo menos 50 mil pessoas neste país.

Para além das questões éticas que envolvem a comercialização de armas entre Alemanha e Brasil, questiona-se como essas armas teriam chegado às mãos dos criminosos. Questiona-se os detalhes do crime e os reais envolvidos, e nada se sabe sobre culpados. Enquanto isso, morte de Marielle Franco segue como um elo perdido, em um labirinto de perguntas sem respostas.

 

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